O mundo é um lugar de liberdade, viagem e curtição ou é apenas uma grande prisão?
Estranho fazer esse tipo de pergunta? Com certeza, pois nesse caso não se trata de uma pergunta retórica, nem um mero jogo de palavras, é algo que por vezes me questiono ao longo desse longo caminho ao redor do mundo.
Penso muito em Botucatu, e na vida que vivi por lá até os 18 anos. Foram anos bem intensos, para dizer o mínimo, mas nada de tão extraordinário. Divórcio dos pais, bulling, ausência de figura paterna, sentimento de estar sozinho no mundo, esse tipo de coisa que muitos vivem na infância, e que talvez os gays passem com mais frequência, ou talvez não, mas o fato é que eu me considerei por muito tempo terrivelmente preso numa vida que me condenava a ser infeliz.
Uma imagem em especial me vem à cabeça com frequência quando estou em lugares novos e bonitos. Há muitos anos atrás as latas de Nescau começaram a vir com uns adesivos sobre lugares do mundo, ou era apenas da Disney, não lembro direito, mas na minha cama eu colei um desses adesivos que mostrava o castelo da Disney, aquele famosão, que todo mundo tira foto. Obviamente eu já tinha visto o castelo na televisão, e em algumas fitas de desenho, onde depois dos créditos eles mostravam as novidades dos parques. E eu olhava aquele adesivo por horas, ao mesmo tempo com uma ansiedade e uma tristeza enormes, pois eu acreditava que eu nunca poderia ir lá, que aquele tipo de coisa nunca seria para mim. Essa certeza era tão forte, um sentimento de impotência diante do mundo, que meu coração apertava, vinha uma falta de ar, um ódio que me fazia tremer, e eu lembro do meu corpo tremendo, um arrepio que me fazia querer gritar. Eu tinha entre 8 e 9 anos nessa época.
Eu sinceramente não sei como eu consegui sair disso, mas agradeço a essa raiva que eu tinha na infância por estar onde estou agora, num voo entre Auckland e Hanói. A raiva me fez perceber que a vida devia ser enfrentada de frente. Sentar e chorar, sonhar e deixar pra lá, não são opções se você quiser dar certo, simples assim. Claro que tentei contar com a sorte, lembro de como eu pedia a Deus para ser sorteado no sorteio da viagem da escola de inglês, como eu fantasiava com alguém que me descobriria, veria o quanto tudo era foda, e me tiraria daquela situação. Com o passar dos anos, já adolescente, resolvi começar a arregaçar as mangas e ser eu mesmo meu benfeitor, aos que compraram meus bolos na escola, meu muito obrigado, e talvez tenha sido esse o primeiro passo para as coisas mudarem.
Deixando a história curta, pois não quero me colocar como vítima ou contar uma história de superação, Botucatu era para mim uma prisão, até eu começar a viajar.
Viajar começou sendo para mim não apenas um prazer, mas uma necessidade. Quando eu viajava, me sentia colocando a cabeça para fora d’água e tomando fôlego para poder continuar. Era como sair de mim mesmo, e me fazia, e ainda faz, olhar as coisas com outra perspectiva, um distanciamento saudável da rotina, um olhar sobre meus objetivos e o que eu quero para o futuro.
Para quem eu conto minha trajetória, os lugares que morei, o quanto eu pulo de um lugar para outro, o quanto sou inquieto, sei que parece estranho tanta mudança, mas com certeza isso está ligado ao sentimento de estar vivo de verdade, e também de escapar da sensação de estar preso, que me acompanha desde sempre.
No entanto, depois desses quase 8 meses de estrada, 14 países, dezenas de horas de voo, tantas e tantas pessoas especiais que apareceram no caminho, estou vendo que talvez tenha mais coisa embaixo desse tapete para pensar. Já escrevi anteriormente sobre o sentimento de solidão, viajar sozinho é estar constantemente acompanhado de si mesmo, não há como escapar, você está em foco o tempo todo, e é muito bizarro, por que não é igual, por exemplo, ser solteiro e morar sozinho, pois mesmo nessa situação existem amigos, familiares, trabalho ou estudo, coisas que te fazem projetar a luz para fora de si. Numa viagem longa como essa não tem isso.
ECA! Esse texto está ficando muito depressivo e triste, parece que eu estou sofrendo nessa viagem, que estou fazendo isso amarrado! Não, não e não! Mas eu quero dizer que a vida é feita de alegria e dor, e elas podem sim acontecer ao mesmo tempo. A Wanessa me mostrou há algum tempo um vídeo desses filósofos da moda, que falava que não devemos negar a dor, que não devemos evitar sofrer, pois é um processo natural do ser humano, uma das ferramentas para se compreender, e não é que é verdade? Pois eu rio e choro ao mesmo tempo sim, nem tudo são flores, e minha vida real não é meu perfil do Instagram, onde só posto a parte bacana. Costumo ter essas discussões comigo mesmo com frequência, a última aconteceu no meio do lago enquanto andava de kayak, botando um dos meu ex como tema, fui fundo na exploração do porquê eu preciso e gosto de namorar.
Um fato curioso é que até agora eu teimei em escrever o que eu sinto. Tirando o diário que fiz durante o Caminho de Santiago e o texto do sexo, acho que fico meio que deixando de lado essa necessidade real de me expressar. Isso mudou quando li um post da Ana Vieira, minha sempre querida professora e amiga, sobre guardar nossos textos, não importa o que pareçam. Pois bem, esse blog é onde quero deixar esses textos, publicar me motiva a escrever, e escrever me faz bem.
Voltando à pergunta inicial, seria o mundo uma grande prisão? Acho que me respondi nas linhas acima. A prisão a que me refiro é esse constante confronto íntimo, esse nó na garganta que se manifesta de tantas formas. Ser livre envolve sofrer, dar a volta ao mundo pode sim ter momentos de tristeza e mesmo de uma agonia que fazem você se sentir um bosta. Não é fácil viver sozinho, eu vivo dizendo que é bom, mas tenho minhas dúvidas. Porém, se tem algo que vale a pena em viajar tanto tempo e só, é parar de se negar, parar de mascarar sua natureza, de se colocar à própria sombra. Se me exponho aqui para qualquer um ler, me exponho a mim mesmo, sem medo de julgamentos, de ser tabulado disso ou daquilo. Esse é quem eu sou, muito prazer.
LM