terça-feira, 30 de agosto de 2016

Dia 12 - Caminho de Santiago - Ages

Voltamos aos bonitos cenários pelo caminho. Hoje cruzei pequenas florestas, vi mais campos do que estradas, e pude apreciar melhor a paisagem.

Minha caminhada hoje foi tranquila, apesar de longa. Não senti tanto o caminho, e fiz mais pausas do que estou acostumado. Tenho uma sensação que estou sendo muito sisudo com minhas caminhadas, pegando muito pesado e isso tem me feito aproveitar menos. Por que não tomar um café nesse lugar tão bonito? Por que não desfrutar de uma boa conversa com outro peregrino que está descansando? Meu medo de que não consiga pegar o ritmo depois não me convence mais, já estou me acostumando a andar, portanto sei que vou conseguir.
 
JÁ CAMINHEI MAIS DE 250 QUILÔMETROS PORRA!

O equivalente à distância entre Botucatu e São Paulo, para sua informação. Ou seja, muito mesmo. A pé. Com uma mochila de quase 13kg nas costas.

Após uns 7km encontrei Ralph e Gregoire no caminho. Ralph é um bombeiro gay aposentado da Califórnia, e Gregoire é um austríaco que trabalha numa indústria química. Os dois são muito legais e o papo com eles sempre flui muito bem.

O Ralph me falou hoje que tenho uma energia muito boa, e que ele precisava dizer isso. Foi a segunda pessoa que me disse isso, a primeira foi a Sívia, de Barcelona. Fico pensando o que fazer com essa informação. Se me falam isso, deve ter alguma razão. Se eu consigo transmitir algo bom para os outros, como posso usar isso de maneira a melhorar o mundo?

Pensei muito hoje sobre o meu talvez futuro negócio. Pensei no modelo de atelier que vi em Barcelona, fazer meus bolos em pequena escala e esperar os clientes passarem. Mas será que é realmente viável algo tão experimental? E será que conseguiria tocar sozinho, ao menos no começo? No momento acho que não. Precisaria de um investimento razoavelmente alto, para um negócio que é difícil de entender o público alvo, pois comprar bolos que são feitos de maneira diferente a cada dia, novos sabores e tals, pode ser uma ideia bacana no começo, mas e a longo prazo?

Minha outra ideia é algo que trabalho dentro de mim desde Bruxelas. Um restaurante pequeno, realmente pequeno, onde eu trabalho sozinho, atendendo 30 pessoas por dia. Eu poderia ter cardápios criativos, trabalharia apenas de segunda a sexta e poderia tocar o negócio sozinho sem tantos problemas. O público seria focado em trabalhadores no almoço, um ambiente informal, um balcão em forma de U e eu cozinho nessa ilha. Entrada, prato, sobremesa e um copo de vinho por 10-15 euros. Atendi 30 pessoas, parei, quem quiser volta amanhã, o que pode ser igualmente uma estratégia de marketing. Me parece uma ideia boa, posso começar bem pequeno, com um investimento que não me mataria se desse errado, pode ser muito divertido e eu acho que cozinho bem o suficiente para fazer isso.

Mas onde?

Essa questão vai me acompanhar durante toda a minha viagem. Para onde eu vou depois de dar a volta ao mundo? Onde quero viver?  Claro que ainda não há resposta, e de verdade eu estou bem com isso, pois ainda há muito que conhecer, e acho que aos poucos vou me habituando a não ter residência fixa, pelo menos por enquanto.

Conversei muito com Gregoire, andamos mais rápido que o Ralph e caminhamos juntos até chegar em Ages. É legal melhorar meu inglês, que estou usando muito esses dias, faz com que eu perceba meus erros e melhore minha pronúncia. É legal também pensar em inglês em alguns momentos, faz com que eu aprenda melhor o idioma.

Estou na menor cidade até agora, sem mercados, sem nada além de algumas casas, uma igreja e três albergues. Vou jantar meu segundo menu dos pelegrinos hoje, porque em nenhum hostel se pode cozinhar. Vou provar a famosa sopa de alho, que tenho vontade de tomar há uns 15 anos, espero que seja gostosa!

LM



Dia 11 - Caminho de Santiago - Belorado

É incrível como uma bolha pequenininha pode incomodar tanto!

Passo a passo, cada vez que o pé toca o chão, lá está ela, pronta para ser lembrada e sentida, incomodando em maior ou menor grau, mas sempre presente. Usei o tal band-aid mágico, que ajudou muito, mas não 100%.

Hoje foi mais um dia nublado e também um pouco frio, além de um pouco de chuva no meio. Perfeito para andar, caminho tranquilo, sem muitas subidas, sem muitos desafios. Isso me fez ter saudades dos primeiros dias, das pequenas florestas, de me embrenhar no meio das árvores, de respirar o verde de mato. A paisagem mudou bastante, as árvores que vinham rareando agora desapareceram, dando lugar a um campo seguido de outro, capim, uva, girassóis, um atrás do outro. Esse cenário monótono, acompanhado de um tempo nublado, faz o caminho perder um pouco do seu encanto, os campos ceifados sem o brilho dourado dado pelo sol, o dia virando uma repetição do anterior.

Pareço muito dramático né? Mas experimenta andar mais de 40km em dois dias vendo apenas esse cenário! 

Hoje andei sozinho, ouvindo muito e treinando com meu bastão para rodar entre os dedos. Tenho feito bastante isso há um tempo, e tenho melhorado! Isso me fez lembrar de quando tentei jogar bolas lá na Aitiara, depois de ler O Físico. No livro, o personagem principal precisa aprender a jogar 5 bolas na mão ao mesmo tempo para poder continuar com seu mestre barbeiro, e lá fui eu tentar com 3 bolas. Evolui um pouco, mas então deixei de lado, como tantas outras coisas na vida, o que não é necessariamente ruim, podemos experimentar mil coisas, mas apenas algumas vão nos despertar o interesse verdadeiro para seguir em frente. É preciso sentir quando é preguiça ou quando é apenas um desinteresse natural, pois infelizmente a preguiça pode bloquear muitos talentos.

Estou pensando que é hora de começar a organizar a viagem para o leste europeu. Essa semana entramos em setembro, portanto falta pouco mais de um mês para eu ir, e decidi que quero tentar alugar um apartamento só para mim, ao menos em Praga. Dividir quartos é legal e possível, mas estou começando a sentir falta a minha intimidade, além de poder sentir que tenho um lugar só meu, mesmo que seja por poucos dias. A sensação de férias não consegue durar muito tempo, e preciso ter essa sensação de "vida normal" em alguns momentos da minha viagem. Legal que já consegui efetivamente diminuir a minha ansiedade em relação à muita coisa, principalmente dinheiro e viajar. As coisas simplesmente dão certo, e ao mesmo tempo pensei tanto sobre o que estou fazendo, me planejei direitinho, portanto tenho que preocupar apenas com imprevistos.

E COMO É ESTRANHO VIVER SEM ANSIEDADE E STRESS!

Sério, é como perder não um amigo, mas um companheiro que te acompanhava quase constantemente, é uma sensação de estar fora do lugar comum. Obviamente é uma delícia me dar conta de que não tenho muito com o que me preocupar além da próxima cidade que preciso chegar, onde está a flechinha que indica o caminho, ou onde irei dormir está noite. Acho que estou começando a experimentar a verdadeira sensação de liberdade.

Arremessa
Mas sempre volta, sempre está aqui.
As coisas são o que são, não adianta tirar fora
Se elas são suas, permanecem, são parte de você
 Negar não adianta, apenas faz doer mais
Aceita sua natureza, faz dela sua força
Seja fiel escudeiro de si mesmo,
Apoie-se, perceba suas fraquezas
Não as ignore, transforme em força seu medo
Olhe para frente, não se esqueça
De quem lhe trouxe até aqui:
Você.

LM




domingo, 28 de agosto de 2016

Dia 9 e dia 10 - Caminho de Santiago - Najera e St Domingo de la Calzada

Ontem eu não escrevi, mas tenho um bom motivo: cozinhei pra galera e preparei mais de 8kg de couscous marroquino com legumes, castanhas e frango!


O dia ontem começou com uma longa caminhada, praticamente 30km em cerca de 6 horas. Não foi muito inteligente, e como recompensa acabei ganhando minha primeira bolha, uma dor de cabeça e um aprendizado

RESPEITAR O CORPO SEMPRE

O caminho não permite excessos, ainda tenho muitos dias pela frente, no mínimo uns 22, e preciso manter meu corpo sadio. Outro ponto é o próprio caminhar, ontem não aproveitei o caminho, apenas andei e no final queria apenas chegar, e não é esse meu objetivo. Decidi, na verdade já sentia que iria ser assim, me manter na faixa dos 20km diários, que eu consigo fazer em cerca de 4 horas, aproveitando as manhãs e chegando feliz e com bastante tempo de aproveitar o resto do dia.

Ao chegar no albergue, a galera toda compartilhava esse sentimento de cansaço, dava pra sentir no ar a energia baixa. Foi mais um albergue que funciona a base de donativos, dei 5 euros, e que tinha uma boa estrutura, tinha até ar condicionado! Fiz meu ritual de banho e lavar roupas, descansei meia hora e fui fazer o que não fiz a primeira semana toda:

VEM NIMIM INTERNET!

Comecei vendo os emails, nada de importante, depois o zap, vários recados dos meus amigos (que saudades!), mas também nada de urgente. Depois fiz o que mais esperei essa semana e liguei para a minha mãe. Falamos bastante, do jeito natural que conversamos desde sempre. Nossas conversas fluem de uma forma tão legal, que parece que ela está ali do outro lado da mesa. Fiquei feliz e aproveitei para ter notícias da família, e descobrir que eles iriam comer nhoque (que aliás vou ter que fazer para mim em breve, deu vontade).

Daí chegou a hora do facebook, e não foi tão ruim quanto esperava, afinal ele tem sido meu maior vício. Postei minhas fotos pois sei que muitos amigos iriam gostar de saber um pouco sobre o caminho, e não fiz muito mais. Postagens sobre a Dilma, matérias sobre as Olimpíadas e tudo o mais não me fizeram falta, e pelo jeito vão continuar não fazendo. Quero realmente me controlar mais para usar o facebook como uma ferramenta, não como a tábua de salvação para o fato de que estou sozinho quase o tempo todo.

Sozinho, estou viajando sozinho pelo mundo. É algo que tem ocupado minha cabeça, afinal eu não tenho ideia de até quando irei viajar, e apesar dos encontros incríveis com pessoas bacanas  que acontecem diariamente aqui, tenho que aceitar que estou só, que sou o único responsável por mim mesmo, e tenho que aprender a administrar de forma saudável minha solidão. Ver as atualizações no FB o tempo todo nteão preenchem vazio nenhum, apenas mascaram algo que deve ser encarado de frente. Tenho que me olhar, me revirar, gritar e chorar se for preciso, mas tenho que descobrir formas mais legais de preencher meu tempo.

Acho que não escrevi, ou não escrevi muito, mas comprei o meu seguro de saúde para emergências durante a viagem, não foi tão caro quanto eu imaginei, 1200 reais para 180 dias, e fiquei mais tranquilo. A sensação de que algo pode dar errado e exigir uma atitude de emergência é algo que está sempre conosco quando estamos longe de casa, o seguro e minha reserva financeira me ajudam a não fazer disso um grande caso.

Hum, também voltei ao mundo dos aplicativos de pegação. Meu, como é frustante, cadê os homens lindos e simpáticos me convidando para sair? Eu sei, eu sei, apenas na minha cabeça. Isso também reflete minha carência, e a eterna necessidade de ser amado. Faz parte da vida, tenho que aprender a lidar com isso. 

Além disso há uma necessidade real de sexo, natural a todo ser humano. Mas sinceramente, já me entreguei o número de vezes suficientes a homens sem valor para me prestar a isso com frequência. Se tem algo que eu faço melhor hoje do que antes é me valorizar, sou um cara legal, bonito e simpático, e tenho que aprender a esperar para ter boas experiências na minha vida.

Uma mulher roncou tanto hoje a noite que lembrei do Diego! Que saudade do meu irmão, como foi boa nossa viagem juntos, como eu torço por ele, como eu amo ele. Espero mesmo que o futuro nos faça ficar mais juntos e unidos!

A caminhada hoje foi linda. 20km com tempo nublado sem frio, na companhia de mãe e filha francesas, a Irene, que é italiana e que tem a personalidade da Irene minha vó (baseado nos relatos dos meus pais), e no Mind, o lituâno que usa shortinho de funkeira carioca. Minha bolha piorou um pouco, mas pelo menos continua sendo apenas uma, estou tratando dela com um band-aid mágico específico para bolhas que comprei na França.

Mal passeei pela cidade, fui apenas no mercado e comprei um monte de comida gostosa. Comi minhas AMADAS IDOLATRADAS croquetas de jamon e tomei um salmorejo também com jamon serrano, que coisa deliciosa dios mio!

O albergue aqui é enorme e moderno, e muito pouco acolhedor, mas ok, hoje está sendo bom estar um pouco mais sozinho. Além disso muitos dos meus amigos iniciais de caminho estão se esforçando para andar um pouco mais cada dia, então vou acabar conhecendo novos companheiros de viagem nos próximos dias.

Uma coisa interessante, ao conhecer muitas e muitas pessoas, você acaba tendo que contar a história da sua vida muitas e muitas vezes. Isso faz você pensar, é essa mesma a minha vida? Essa é de verdade a minha história? Relembrar com frequência pessoas e momentos importantes faz você involuntariamente ter que mexer com sentimentos bem profundos, o que imagino que seja bom.

LM








sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Dia 8 - Caminho de Santiago - Logroño

29 quilômetros de caminhada hoje! Tô muerto!

Mentira, estou nada, uma dor no pé, um incômodo no ombro direito e só, mas é algo para tomar cuidado, um deslize numa caminhada dessa pode dar um prejuízo grande.

Acordei as 5 e meia hoje. Não escrevi antes, mas tenho dormido muito, muito mal, e não é por causa das outras pessoas, já que estou usando protetores auriculares, acho que é por causa da experiência, além de dormir num lugar diferente a cada dia. Hoje dormi melhor, mas acordei a cada duas horas sem motivo. 

A caminhada foi no escuro no começo, e solitária durante suas 5 horas. Ao contrário dos outros dias, minha cabeça ficou mais leve e nenhum pensamento específico ficou. Observei bastante a paisagem, reparei nas montanhas e nos inúmeros vinhedos pelo caminho, provando muitas uvas, que já estão quase maduras, como acabei de ler o livro A Bodega, o último que não tinha lido do incrível Noah Gordon, fico pensando nos personagens, que se dedicavam a cultivar uvas.

Saí do Reino de Navarra hoje, e entrei na Comunidad de la Rioja, que é super espanhola, ainda bem! Sinceramente eu acho esses separatistas espanhóis uns chatos, só ficam reclamando da Espanha o tempo todo, querendo ser os diferentões, credo! Aqui em Logroño é diferente, tem Mercadona, 100 montaditos e aquele monte de bar com tapas e cañas que a gente gosta.

Estou alojado num albergue que fica anexo à uma igreja, e o pagamento é doação voluntária. Doei 6 euros e um prato de brigadeiros que acabei de fazer. Vou dormir num quartão com umas esteiras no chão, mas que são bem confortáveis, tenho uma tomada aqui do lado e a melhor conexão de internet desde o começo do caminho! Daqui a pouco vamos cozinhar o jantar, depois ir a missa, comer, fazer oração e dormir. Espero que a conexão continue boa para eu assistir algo legal na Netflix.

Hoje a tarde terminei de assistir o filme Holding the Man, que foi baseado numa história real. Dois caras australianos se apaixonam e vivem juntos 15 anos, pegam AIDS e morrem. Bem bonito e triste, antes de saber que era real fiquei chateado com sempre matarem os gays nos filmes, afinal por que não podemos ter um final feliz? Mas depois vi que é a vida, as vezes dá certo, as vezes não. Chorei porque é lindo amar, e é isso.

Durante esses dois últimos dias tenho pensado sobre a vida de padre. Será que isso é uma possibilidade para mim? Há muito tempo atrás, quando eu tinha uns 13 anos, pensei muito em ser monge, mas desisti. Por que não pensar bem sobre o assunto? Um bom padre pode ajudar muita gente, pode fazer a diferença numa comunidade, ao mesmo tempo que pode estudar bastante e se desenvolver pessoalmente. Não importa se você é hétero ou gay, afinal irá levar a mesma vida de celibato, o que pode ser muito, muito difícil, mas vou pensar melhor no assunto mesmo assim.

Minha relação com o sexo tem mudado bastante nos últimos tempos, tenho me dado conta o quanto é difícil ter realmente prazer, eu mesmo não tenho desde que terminei meu relacionamento, portanto não adianta mais ir à uma sauna ou usar um aplicativo de pegação, é outra coisa, eu preciso do contato, eu preciso mais da química agora, o que provavelmente vai limitar minhas experiências, porém prefiro mil vezes uma punheta do que perder meu tempo com uma pessoa aleatória, e dessa vez estou sendo sincero quando digo isso.

Não fiz as contas ontem, mas estou gastando bem pouquinho esses dias:

Dia 1: 37,00
Dia 2: 27,30
Dia 3: 25,00
Dia 4: 20,00
Dia 5: 23,50
Dia 6: 23,50
Dia 7: 20,00
Dia 8: 20,00

Sobre os albergues resolvi desistir de escrever, acho perda de tempo porque não vou querer necessariamente recordar disso no futuro, e se alguém precisar de dicas, os guias já são bem completos.

LM









quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Dia 7 - Caminho de Santiago - Los Arcos

Não deveria ter bebido tanto, obviamente.

Dormi muito mal, acordei o tempo todo com ânsia e tomei muita água, mas hoje cedo ao sair do albergue tomei um iboprofeno e um café sem açúcar pra aguentar a dor de cabeça.

Pensei muito sobre a forma como lido com meus excessos. Álcool principalmente, eu simplesmente perco a noção de limite e acabo passando mal. Claro que foi uma lição, eu devo mesmo pensar nisso mais a sério, porém a questão que me vem é: por quê?

Para mim beber me dá o "direito" de liberar algumas amarras que existem em mim. Todo o trabalho para parar de querer conquistar qualquer um que passe na minha frente desaparece, e eu fico tarado demais, falando merda e sendo inconveniente. No fundo eu apenas sou eu mesmo, faz parte da minha natureza isso, e beber só faz eu tirar minha capa social. 

E precisamos da capa social para construir nossa imagem perante a sociedade onde estamos inseridos. 

Além disso, beber dá uma dor de cabeça do caralho, e eu ODEIO ODEIO ODEIO a sensação da ressaca, é como se eu tivesse perdido a batalha contra o bom senso. Me sinto bem imbecil, porque nunca vale a pena.

E não é que ao sair da cidade o que é que eu encontro? Uma FONTE DE VINHO CACETE!

Meu, Deus só pode estar de sacanagem né? Tipo, não queria beber viado, agora bebe! E como tinha uma plaquinha dizendo que tinha que beber pra chegar bem em Santiago e blá blá blá, fiz conchinha com a mão e bebi um golinho. 

Agora imagina essa parada no Brasil? Vinho. Grátis. Uma fonte de vinho. Não durava nem dois dias, a galera ia lá pra passar a noite! Imagino eu contando essa história para a Wanessa! Que saudade de falar com meus amigos! É a única parte chata de ficar sem facebook e zap zap. Eu fico pensando em todos eles, queria contar pro Vinícius que eu começo a minha caminhada quase todo dia ao som de Ru Paul e faço dancinhas com meu bastão de caminhada, falar pro Daniel que já conheci 3 pessoas de Albacete e que o cara que eu conheci é igualzinho ao Rodrigo! Falar pra Wa o sucesso que ela ia fazer com os caras aqui, aquela linda!

Mas eu vou contar tudo isso, só esperar uns dias. Por enquanto, estou muito feliz de não estar acessando nada, realmente não faz falta, exceto por algumas exceções. Mas é importante explicar que minha abstinência é basicamente de face, zap e apps de pegação. Estou usando muito o app do caminho, o google maps, os apps de banco e a Netflix, só que com as péssimas conexões dos albergues fica difícil assistir qualquer coisa.

Hoje a caminhada foi tão legal. Depois da fonte de vinho, encontrei dois caras, um lituano e um irlandês, e caminhos juntos todos os quilômetros restantes, conversando! Conversei muito com o lituano, e é incrível como o ser humano, com todas as suas limitações, pode ser tão interessante! Quantas formas de viver a vida! O cara trabalha como ajudante de escultor, e me contou sua história, coisas sobre seu país, a Lituânia tinha o mesmo nível de vida da Dinamarca antes dos comunistas, sobre a vida conjugal e muito mais.

Agora estou no albergue em Los Arcos, sentando numa mesa numa sombra do jardim com alemães e um francês, falando francês. O Tim, um dos alemães, foi a primeira pessoa interessada em aprender algumas coisas em português. Socializar é um bom exercício, sem o celular ajuda bastante, se obrigar a se interessar pelo outro, pode ser difícil no começo, mas a gente se habitua e começa a ficar interessante!







Dia 6 - Caminho de Santiago - Estella

Primeira coisa que devo dizer ao meu favor: estou bêbado!

Isso se deve às pessoas impressionantes que encontramos pelo caminho. Hoje bebi muito mais do que estou acostumado, mas valeu a pena cada gole.

O caminho hoje foi de cerca de 21 quilômetros, só que depois das 10 horas, tudo fica um pouco difícil, e o sol é muito forte.

Mais um dia sem dores fortes, apenas alguns momentos em que o pé e a cintura pegaram um pouco, mas nada sério. Essa evolução do meu corpo me deixa feliz, e espero que continue até Santiago.

Hoje falei com muita gente sobre a minha homossexualidade, e isso me deixou muito feliz. As pessoas precisam conhecer os gays, precisam saber que somos iguais a qualquer um, que não somos um risco ou um estorvo. Tento sempre introduzir o assunto da forma mais suave possível, para que ninguém se choque, para não dar desculpas aos preconceitos.

Hoje não tive conversas filosóficas, caminhei durante 4 horas e meia sozinho, foi a primeira vez, e foi muito bom. Por quê? Porque a sensação de liberdade é muito maior, dá para sentir de verdade que o caminho é só seu. Minhas companhias hoje foram a Maria Bethânia, uma tocadora de cravo e uma playlist que o Danielzinho me fez.

Engraçado pensar agora. A minha vontade era casar e trazer ele pra cá. Será que eu deveria ter feito isso? Quando eu lembro dele me vem um amor tão forte, um sentimento tão bonito, que eu fico pensando muito. Ele é muito novo, mas acho que o maior obstáculo é realmente as fases da vida. Ou ao menos penso que é isso.

Encontrei o Giacomo e o Daniele hoje, dois italianos bem gente boa. Falamos de putaria e bebemos bastante juntos, foi bem legal!

Agora já passou das dez, vou dormir porque amanhã acordo cedo!

LM






quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Dia 5 - Caminho de Santiago - Puente de la Reina

Minhas costas não doeram hoje! No bolhas day again!

Foi até meio estranho, a dor nos ombros já estava virando uma companheira de final de caminhada. Estou surpreso e feliz, mas também acho que foi meio que sorte. Veremos.

O amanhecer hoje foi especialmente bonito, aos poucos a paisagem vai mudando, e como estou andando literalmente um passo de cada vez, é fácil ir notando a diferença. Da França até poucos quilômetros atrás havia uma floresta rica e densa, muitos bosques, muito verde. Aqui já vemos árvores menores, muitas coníferas, e uma vegetação mais rasteira. E muitos campos, muitos e muitos, todos ceifados, todos muito dourados, que compôem uma paisagem harmoniosa e perfeita para fotos.

A brasileira que encontrei ontem, Luciana, me fez companhia até o monte Alto del Perdon, ontem tem a escultura dos peregrinos, e tivemos uma conversa tão especial, onde pude repensar algumas coisas da minha vida, mas principalmenteo quanto é importante estar aberto a conhecer as pessoas, não apenas conquistar. O coração fica mais leve quando se conversa sem interesses, quando não sabe nem se iremos ver novamente aquela pessoa.  Por que isso não acontece com mais frequência? Uma sugestão pode ser o uso intensivo de celulares e tals, mas não apenas isso, pois tem relação igualmente com a vontade de se comunicar, a abertura para responder, e a curiosidade para perguntar.

O casal mais fofo do mundo, o Alessandro e a Austeja (com um pontinhos no e), apareceu lá no alto do monte, assim como o Tim, da Alemanha, e a Tania, da Austria. Comecei a descida do monte com o casal, e tivemos uma conversa sobre os motivos da curisidade, a motivação humana, para onde irá nos levar os avanços da inteligência artificial e outros temas tão legais e aleatórios que fizeram o tempo passar bem depressa e tranquilo.

Num certo momento, paramos na barraquinha de um garoto genial que oferecia limonada em troca de uma doação voluntária, e comecei a conversar com o Tim sob um sol que começava a ficar escaldante.

AQUI FAZ CALOR CACETE, FINALMENTE VOLTAMOS AO VERÃO!

Hoje fez 39 graus, apenas para constar.

O Tim tem 23 anos, é de Stutgart e está fazendo o caminho para dar uma pausa na rotina de estudos do final da faculdade de business. E ele me lembrou demais dos meus amigos de Águas de São Pedro! Eloá e Luiz (que continuam queridos até hoje), e tantos outros que fizeram minha vida lá na terra do nunca especial. O Tim é apenas um jovem que gosta de se divertir e beber, como qualquer outros, mas que também tem suas convicções, me contou que seus dois objetivos de vida são, ter sucesso e ser feliz.

TER SUCESSO, E SER FELIZ. TEM COMO SER MAIS SIMPLES?

Conversamos sobre o conceito tanto de sucesso quanto de felicidade, e concordamos num ponto de que é preciso levar seus projetos até o final. Desistir sempre do que almejamos significa desistir de nós mesmo. Engraçado que esse tema surgiu com a Luciana também, que é casada e mãe de dois filhos, mas está fazendo este caminho sozinha. Ela me contou que os 25 anos de casada trouxeram a ela a necessidade de ter sua individualidade respeitada, ao mesmo tempo que é preciso ter planos enquanto casal. O dela e do marido, conforme eles combinaram há muito tempo são: estudar, viajar, cuidar dos filhos, cuidar um do outro.

Individualidade e entrega. Antagonismos que resumem bem vários momentos da minha vida. É difícil pesar as duas coisas na balança, ainda mais difícil equilibrar  as duas coisas ao mesmo tempo.

Penso muito no meu primeiro namorado nesses dias, como foi importante essa primeira relação na minha vida, como me ensinou coisas boas e coisas ruins, me preparou para a vida a adulta, e isso é insubstituível. Conhecendo tantas pessoas mais novas, acabo me colocando também nessa idade, e fico feliz por todas as escolhas que fiz, pois foram feitas com o coração, e foram verdadeiras.

Estou num albergue de padres reformadores, paguei bem barato para estar aqui, 5 euros, e vou cozinhar meu jantar com o casal fofo e um italiano que apareceu. Vou fazer minha especialidade, tarte Tatin, só que dessa vez sem forno, porque não tem, então comprei uns biscoitos para quebrar e por por cima antes de virar, tipo um crumble invertido. Para comer vamos fazer tortilla e hamburguer, e tomar muito vinho!

Para guardar para mim e para os outros vou fazer uma avaliação dos lugares onde fiquei pelo caminho:

SJPP
Accueil Pelerin Pilgrins Hostel
Um lugar simples e bom, custou 10 euros, cama com luz e tomada individual, água quente e um café da manhã composto de torrada, manteiga, geléia e um café solúvel (portanto horrível). A vibe é bem legal. Muitas e muitas camas no mesmo quarto. Wi-fi médio.

Roscenvalles
Auberge Touristique Municipal
Hostel enorme, todo novinho, porém com pouca hospitalidade. Fique na cama de cima, bem difícil de subir, sem tomada ou luz. Cozinha super bem equipada mas a cidade não tem supermercado, portanto inútil. Lavanderia com duas holandesas fofas que lavaram e secaram a roupa de 4 pessoas por 7,5 euros. Paguei 12 euros e achei caro. Wi-fi horrível.

Larrasoaña
Hostel San Nicolas
É tipo uma casa adaptada, mas muito bem feito, tudo parecendo muito novo. Cama confortável com lençóis descartáveis. Ótimos banheiro e cozinha. Tem um mercado bem ao lado. Wi-fi horrível.

Dia 1: 37,00
Dia 2: 27,30
Dia 3: 25,00
Dia 4: 20,00
Dia 5: 23,50

LM





segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Dia 4 - Caminho de Santiago - Cizu Menor

Hoje tive uma conversa ótima comigo mesmo. Foram 3 tópicos:

- Como as pessoas julgam seus gostos e a forma como você ocupa seu tempo
- Como não ser um idiota ao escolher ter contato humano com alguém
- A forma complexa pela qual desenvolvemos nossos gostos e habilidades

Tudo na verdade está muito interligado. Começando pelas pessoas, como nós julgamos como o outro gasta seu tempo aqui na Terra! Ao nascer, ocupamos nosso tempo com chorar, comer, cagar e dormir, e ao longo do tempo vamos inventando novas formas de ocupar nossa existência, estudos, amor, trabalho, Justin Bieber, esse tipo de coisa. Mas a sociedade desenvolveu uma norma coletiva onde separa os ocupações "boas" das "ruins". Hoje em dia, por exemplo, passar muito tempo com o celular usando facebook ou um app de pegação é considerado ruim, agora passar noites em claro estudando medicina é considerado bom. Por quê? De verdade, a comparação pode parecer óbvia e exdrúxula, mas porque esse julgamento, cada um não deveria fazer da vida o que quer, em teoria o que lhe dá prazer? Quem somos nós para dizer o que é certo ou errado? Uma hipótese é a ideia capitalista de produtividade, de que o tempo deve ser aproveitando fazendo algo considerado útil, como estudar, etc. O ócio não criativo é o demônio, é o despropósito, é a inutilidade do tempo de vida.

Ah, vai pra puta que pariu com isso! A vida é minha cacete, e eu faço o que eu quiser!

Mas então por que enchem tanto o saco se eu ficar usando o celular? Bom, daí a gente entra em outra área, que é o contato humano. Você voluntariamente escolheu estar ao lado de alguém, e como assim não vai dar atenção para a pessoa? Que tipo de contato é esse? Nenhum problema em querer ficar sozinho na sua concha lendo, ouvindo música ou qualquer outra coisa, mas se estamos juntos, é porque nós dois decidimos, portanto o momento deve ser aproveitado a dois, isso entra no campo do respeito. Momento mea culpa, eu sou péssimo nisso, e vivem brigando, com toda a razão, por conta dessa falha. Mas como dizem, o primeiro passo para solucionar um problema, é reconhecê-lo.

Já a terceira parte é a mais inexplicável, afinal, como definir como nos formamos como ser pensante? Agora a noite o velhinho que cuida do albergue tocou violão e cantou para nós dentro da igreja que fica aqui em frente, e fiquei pensando como seria legal poder cantar e tocar também com essa facilidade de quem toca bem, de quem pode aprender aquilo. Comprei um violão tanto tempo atrás e sinto que tentei tão pouco. Será que eu realmente não consigo tocar? Qual o limite entre o esforço e a aptidão?

Conheci uma brasileira hoje, a Luciana, que abriu sem querer a minha mente de uma forma mais profunda para a questão de aproveitar o caminho, sem pensar tanto no objetivo da chegada. Vou aproveitar amanhã que estarei sem o meu companheiro mudo (que seguiu seu rumo assim que chegamos em Cizu Menor), e vou trabalhar mais essa questão de curtir melhor minha caminhada. O bom é que ainda tenho um mês para curtir isso.

Um mês. De caminhada. Caralho!

Como será que eu vou me sentir nesse tempo? Esses 3 dias de caminho já foram legais, cheios de descobertas, cheios de dores também, como será?

E voltar a usar o facebook, whatsapp, etc? Nossa, só fazem 3 dias que estou sem isso, mas me sinto um drogado na rebordosa de quem tenta sair do vício, aliviado, mas cheio de saudade.
Pamplona foi uma experiência interessante, uma saída do caminho para o esquema cidade grande, mercados, pessoas, movimento. A cidade em si é linda, muito bem cuidada, com aquelas lixeiras subterrâneas que são meu sonho para São Paulo. Tem umas muralhas que formam uma estrela, e uma catedral que tem que pagar para entrar, portanto não visitei. Acho um absurdo isso, uma palhaçada, ou transforma a igreja em museu e para de rezar missa lá dentro, ou deixa a porta do templo aberta para qualquer fiel poder entrar e rezar.

Estou hospedado num albergue mantido pela ordem de Malta, achei bem diferente, e a cruz vermelha na minha credencial de peregrino ficou maravilhosa! É um esquema meio de donativos, tirando uma tarifa básica de 6 euros, mas tem várias comidas e tals e é só deixar o quanto quiser, dessa forma, hoje foi o dia mais econômico da viagem!

Dia 1: 37,00
Dia 2: 27,30
Dia 3: 25,00
Dia 4: 20,00

Boa noite, bom caminho!


LM