sábado, 20 de agosto de 2016

Caminho de Santiago - dia 2 - Roncesvalles

Dizem que o primeiro dia de caminhada é um dos mais difíceis de todo o caminho. E foi difícil pra caralho!

É difícil começar a escrever sobre o que aconteceu. Primeira coisa, as músicas que vêm à cabeça, comecei com o Hino à Independência, que me acompanhou praticamente pelas 2 horas iniciais de caminhada.

Parabéns ó brasileiros, ver contente a mãe gentil, já raiou a liberdade, no horizonte do Brasil (parapá parapapá!)

Depois passamos pelos clássicos "estava a velha a fiar" e aquela música chata dos quilotes.

Acho que isso se deve ao fato de eu estar com saudades do meu país. Não adianta ser durão, fazer a linha internacional nem nada disso, eu sinto falta e pronto, não é racional, não chega nem a ser saudade, é apenas a falta do português, de saber como as coisas funcionam, esse tipo de coisa. E é bom sentir falta, é bom dar valor ao que se tem, mesmo que meus planos agora sejam de ficar longe por um tempo.

Após deixar o albergue, passei pela frente da igreja, que estava aberta, e vi que, na portinha onde tinha deixado coisas para doar ontem, ainda havia a minha trouxinha. Então a peguei, entrei na igreja, deixei num banco e falei para os velhinhos que acendiam as primeiras velas do dia: uma pequena doação para os pobres, um bom dia para vocês! Fiz o sinal da cruz e saí, feliz da vida.

O desapego é uma das lições mais importantes mesmo desse primeiro mês. Nada vale a pena, nada merece mais do que um pouco de nós. O que não tem serventia, o que não é usado, deve ser descartado, simples assim. Ontem eu tinha a necessidade real de ter um apartamento, televisão, geladeira boa e sempre cheia, portanto os mantinha comigo, hoje eu preciso da minha mochila o mais leve possível, roupas que sequem rápido e alguns produtos de higiene, então os tenho. Mudamos, e conosco nossas necessidades, quanto tempo se passa na vida sem se refletir de verdade sobre isso. Os objetos quando vazios de significado e utilidade são apenas mais uma forma de prisão, de opressão.

A subida é longa, tipo longa mesmo, foram praticamente os primeiros 16km (!), com trechos bem inclinados.

PHODA

E para começar o caminho de uma forma especial, sem ironias, foi um dia frio, em alguns trechos
menos de 10 graus, com chuva e com neblina. Dá para imaginar? Uma subida do cão, com frio e chuva e sem enxergar quase nada, com um mochilão pesado nas costas? Então por que eu achei o dia realmente bom? Porque assim é a vida, ora bolas! A vida é expectativa, queremos um começo de caminho feliz e ensolarado, com as flores e os passarinhos nos incentivando a cada passo, novos amigos aparecendo para caminhar ao seu lado e tudo indo bem. Só que a vida real é o desafio, a superação de medos, limites, e a consequência dos nossos atos.

Pois apesar do tempo não estar de acordo com a expectativa, o dia foi realmente muito lindo e especial. No começo da manhã teve um período sem chuva, e as nuvens se abriram um pouco para me presentear com uma vista linda, uma paisagem pastoral com vacas e ovelhas que me fez pensar como a natureza realmente é perfeita, como os animais, com sua ignorância da morte, vivem apenas o dia, encarando chuva e frio para comer e se manter vivo. É uma força muito forte e sábia essa.

Após as duas primeiras horas de caminhada surge uma casinha na estrada, num lugar chamado Orisson. Tomei um café e comi uma madalena. Uma pequena despedida da França que logo mais iria acabar numa fronteira tênue com a Espanha. Nesse lugar, vários outros peregrinos resolveram parar para uma pausa maior, tirar os sapatos, aliviar um pouco a tensão da primeira subida. Para mim essa tática não funciona, pois preciso de uma recompensa ao final do grande esforço, e para mim essa recompensa é o descanso e a comida, portanto se eu fizer pausas longas e me sentir relaxado, minha cabeça processa aquilo como o final da missão, e depois para levantar e continuar fica difícil.

Isso me leva a uma questão que acho que 100% dos peregrinos escrevem: ESSA PORRA NÃO É UMA CORRIDA! Ah, mas como dizer para nossa mente, acostumada a querer ser melhor, mais rápida, mais forte que a dos coleguinhas, que cada um tem seu ritmo, e que o caminho é pessoal, cada um faz o seu? No meu caso, eu preciso me lembrar em voz alta e com frequência disso, e dessa forma criei um ritmo de caminhada constante, que não me deixou esgotado em nenhum momento do dia, e que me fez chegar bem em Roncesvalles, num tempo também muito bom, cerca de 7 horas.

Mas é claro que eu estou destruído. Dor nos ombros e na batata da perna estão pegando mais. Fiz alongamento após o banho, assim como uma massagem nos pés, que obviamente estão cansados. Mas também tenho notícias boas, sem bolhas e sem dores fortes no joelho! Justamente o que me preocupava mais.

Dei um nome para o meu bastão: Mirtô. Obrigado vovô, por tudo, te amo.

O Mirtô me ajudou muito hoje, fazendo com que eu não forçasse demais meus joelhos e me dando equilíbrio quando eu precisava. Ainda estou aprendendo a usá-lo, e observar os outros peregrinos ajuda bastante, já aprendi a encaixar ele meio inclinadinho na terra, e também a usar a fita que vem na manopla para fixar minha mão e ajudar a distribuir a força. Foi um bom começo de amizade.

Tem tantas senhoras nesse caminho! Muitas com certeza acima dos 50 anos, e elas vão que vão, não estão nem aí, um passinho atrás do outro, muitas vezes na minha frente! (Lucas, não é uma competição... ok ok)

Nos últimos quilômetros de caminhada passamos por uma floresta mágica tão linda, tão verde, e a névoa deixou tudo aquilo ainda mais incrível. Teve uma hora em que eu estava sozinho e parei. Não conseguia ver mais de 10 metros a frente ou atrás, e ao deixar de caminhar parou a "música" produzida pelo meu corpo e mochila, o que me deixou envolvido pelo silêncio de floresta, onde se consegue ouvir as folhas, o chão, e a si mesmo. Foi algo que mal durou um minuto, mas foi especial.

O albergue é bem grande e bem moderno, o chuveiro é DELICIOOOOOOOOOOSSSSSSSSSSSSOOOOOOOOOOOOOOOOO, e eu fui certeiro, cheguei, deixei as coisas no armário e fui logo tomar banho antes de formar fila. A cama também é bem confortável, só não tem tomadas ou luzes individuais, o wi-fi também não pega aqui, mas como eu estou facebookfree essa semana, não faz muita diferença. O preço também foi um pouco mais caro do que eu imaginava, 12 euros.

Vou fazer uma tabelinha de gastos para ver o quanto vai sair o caminho todo, contando a partir dos meus gastos em SJPP

Dia 1: 37
Dia 2: 27,30

O jantar foi muito bom, não pela comida, que foi preparada com desrespeito (serviram iogurte de sobremesa), mas pela mesa cheia de gente legal, conversamos muito, falei mais do que devia após uns copos de vinho, e fomos os últimos a sair. Acho que dessa forma que se vão formando os amigos do caminho. Vamos ver se isso dura!

LM





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